Poética 01
UM TIRO
Parece cocaína, mas é só o açúcar da última colher que jamais caiu na xícara da Fulana: exatamente às 7:23 da manhã, no intervalo comercial do jornal matinal, uma bala entrara em Fulana sem pedir licença. Penetrou suas costas entre a segunda e terceira costelas, saindo pelo peito, sem tocar-lhe o coração. Em compensação, um pulmão e uma artéria… Os detalhes não importam: Fulana foi-se; ‘Foda-se’, pensei. ‘Nem sei quem é Fulana. Maria a mais ou a menos, mantenhamo-nos amenos.’ Mas Fulana não era qualquer uma.
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DORFLEX
Já dormi de todo jeito e nada me doía. Hoje carrego uma cartela de analgésico para a padaria. 30 anos e a morte já me acena. Pior: ela já me atrai.
Há dez anos eu tinha certeza que jamais temeria a idade, a morte, a solidão. Hoje temo isso tudo e, no fundo, algo ainda me diz: “Mas isso é que é coragem!”
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VIZINHAS
Quem é a louca: a que grita ou que se matou em silêncio?
Chamo ‘louco’ não aos loucos, mas àqueles que me incomodam.
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TIA
Nem a opinião dos outros, nem as próprias, nem o lugar, nem a companhia, nem a falta de, nem a fartura, nem as festas, nem a crise, nem o despejo, nem a traição da irmã, nem o alcoolismo do marido, nem os cachorros, nem as rugas: nada abalava Maria. Morreu, mas nem parece.
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MINI-CONTO EM 3 HAIKAIS
Pata espreme
corpo mole
no concreto.
Uma gata
brincando
c’a lagarta.
Sonho nulo:
não viu asa
nem casulo.
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FOGO DE CHÃO
Por hoje deu
‘inda que sem dado.
Deito numa cama
sem estrado.
Deitado penso
em São Lourenço:
Deus ri;
o cão que late.
O inferno é um churrasco de osso
assado em brasa morna.
(Analisando friamente,
talvez eu vá pra lá.)